O cachorro e a serpente

Há muito tempo, existiu um rico fazendeiro que possuía um cachorro em sua casa. Apesar da prosperidade de seu dono, o cão vivia infeliz, pois era maltratado.

Certa manhã, o animal rumou melancolicamente em direção ao rio que atravessava os fundos da propriedade. Como já morava ali há alguns anos, conhecia todos os bichos da fazenda e, à medida que caminhava, cumprimentava seus vizinhos – bois, galinhas, perus e cavalos – ao passar por eles.

Ao chegar à margem do rio, o cachorro deitou-se sob a sombra de uma árvore e pôs-se a pensar na vida. Passados alguns instantes, eis que dele se aproxima, saída do mato, uma serpente de aspecto horripilante, porém de índole amigável.

A serpente, que também era conhecida do cachorro, saudou-o da seguinte maneira:

– Bom dia, amigo! Como vai? O que o traz a estas bandas? Nunca o vejo por aqui…

– Olá, senhora serpente. Estou vivendo minha triste vida de cão. Vim aqui para meditar e tentar encontrar uma solução para o meu problema…

– Ora companheiro, e que problema é esse que tanto o preocupa?

Diante da pergunta feita pela serpente, o cachorro deu um profundo suspiro e passou a narrar suas desventuras:

– Minha amiga, disse ele com desgosto, o problema que me atormenta é a ingratidão do meu dono. Por anos tenho servido fielmente a ele e a sua família; de manhãzinha, assim que o sol nasce, acompanho os vaqueiros da fazenda, ajudando-os a tanger o gado para o pasto, e à noitinha faço o percurso contrário, recolhendo-o ao curral; na hora do almoço dos empregados, acompanho a criada que transporta a comida até a lavoura, cuidando de sua proteção, e durante a noite vigio e protejo a propriedade dele contra a invasão de ladrões e de animais que atacam a criação, como raposas e guaxinins.

– Minha nossa, exclamou a serpente, você realmente trabalha duro. E o que ganha do seu dono em paga de tantos serviços?

– O que ganho em paga? perguntou o cachorro com ar de indignação. Pois vou lhe dizer: em troca de tanta lealdade e esforço, sou obrigado a dormir fora de casa, ao relento, sofrendo com os rigores do sol e da chuva; sou alimentado com restos de comida que me são atirados pelo malvado enquanto ele se banqueteia, e se não chego a passar fome é porque aprendi a caçar no mato o meu sustento. Mas o pior mesmo, dona serpente, é a falta de afeto com que sou tratado. Meu dono jamais me afaga ou brinca comigo; está sempre muito ocupado, tratando de seus negócios. Quando eu era um filhote, seus filhos ainda me davam um pouco de atenção e carinho, mas depois que cresci até eles se afastaram de mim e passaram a me ver como isso que sou hoje, um reles escravo.

– Não diga isso, criatura! protestou a serpente. Não se rebaixe desse modo, e nem se deixe abater. Você precisa mostrar para esse seu dono que é muito mais que um escravo, é um amigo, e de grande utilidade, por sinal.

– Mas como farei isso?

– Não se preocupe. Eu tenho um plano que fará aumentar a estima e a gratidão do seu dono por você. Você nunca mais será maltratado, basta seguir o que eu disser.

A astuta serpente pôs-se então a contar o plano que tinha em mente para tentar ajudar o cão. Ela combinou com ele que, quando o dono e seus familiares estivessem almoçando, ela entraria na cozinha e se dirigiria diretamente ao fazendeiro, como se fosse mordê-lo. Quando o homem notasse a presença do perigoso réptil, ficaria assustado e tentaria fugir, daí o cachorro entraria em cena e fingiria lutar com a serpente, espantando-a.

– Excelente ideia! Simularemos uma briga e você me deixará vencer, fugindo para a mata como se estivesse gravemente ferida.

– Isso mesmo, camarada. Depois de ter salvo seu dono e a família dele, você se transformará no herói da casa e irá gozar uma vida de rei! Mas temos que tomar todo o cuidado para que em nossa encenação você não acabe picado, o que seria fatal. Para não corrermos nenhum risco, eu fincarei minhas presas no tronco de uma árvore, depositando nele todo o meu veneno, assim não haverá perigo.

Ajustados todos os detalhes do plano, o cachorro agradeceu a serpente e voltou alegre para a casa da fazenda. Durante o restante da manhã ele se entregou às suas atividades rotineiras com ânimo renovado, ansioso para que chegasse logo o momento de provar mais uma vez o seu valor e sua fidelidade ao dono.

Já a serpente foi para sua toca tirar um cochilo e, pouco antes do meio-dia, despertou, saiu da toca, livrou-se do seu temível veneno, conforme prometido, e partiu rastejando em direção à casa da fazenda.

No horário de sempre, o cachorro foi para debaixo da mesa onde a família do fazendeiro fazia sua refeição. Ele ficou, como de costume, recebendo as sobras de alimento que lhe eram jogadas, mas seu pensamento estava apenas no ato heroico que deveria protagonizar, salvando seu dono da “ameaça” que estava por vir.

A serpente, rastejando com muita cautela para não ser vista, chegou ao terreiro da casa e aproveitou que a porta da cozinha estava aberta para entrar. O cão, de onde estava, viu-a chegar e a deixou prosseguir, fazendo-lhe um gesto com a cabeça.

Com muito cuidado e sem fazer o menor barulho, a víbora avançou até ficar a poucos passos do homem que comia tranquilamente, e nesse momento soltou um silvo medonho.

O silvo, além de chamar a atenção de todos para a sua presença, era também o sinal combinado para a “luta” começar. O fazendeiro, como era de se esperar, ao notar diante dele a ameaçadora intrusa, deu um grande pulo e quase caiu de costas com o susto. Ao recuperar o equilíbrio, fez menção de puxar o revólver que sempre trazia à cintura, porém não teve tempo: rápido como um raio, o leal cachorro atracou-se com a invasora e ambos deram início a um combate feroz.

Por alguns instantes, os dois animais estorceram-se no chão como se fossem um só, emitindo, cada um a seu modo, ruídos de dor e raiva. Para tornar o combate mais convincente, o cachorro permitiu que o réptil o mordesse de verdade, e ele também cravou seus dentes na adversária, todavia sem apertar com força.

Ao fim de um minuto que mais pareceu uma eternidade, a serpente, fingindo-se derrotada e ferida, bateu em retirada. O fazendeiro quis persegui-la, mas quando chegou ao terreiro ela já ia longe, demonstrando demasiada agilidade para um animal machucado.

Apesar disso o homem não desconfiou de nada e, voltando para dentro de casa, deparou-se com o cão sentado, lambendo as feridas e arfando de cansaço, como se tivesse feito um enorme esforço. Ele abanava a cauda para seu dono e o olhava com uma expressão contente, pensando: “Agora finalmente serei reconhecido”.

O fazendeiro, vendo seus parentes em segurança, disse:

– Gente, nosso cachorro Melão acaba de realizar uma proeza sem tamanho. Ele arriscou a vida para nos defender, enfrentando um bicho peçonhento e duas vezes maior do que ele.

– Bravo! Bravo! Viva o Melão!, gritavam os habitantes da casa.

– Por causa desse ato de valentia, continuou ele, nosso amigo foi picado pela cobra várias vezes, e em alguns minutos estará morto pelo efeito do veneno. Como não podemos fazer nada para salvá-lo, eu não permitirei que ele sofra nem mais um segundo…

E, sem dar ao animal nenhuma oportunidade de reação, o fazendeiro sacou sua arma e disparou contra ele, matando-o.

Moral da história:

De um ingrato não esperes reconhecimento.

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